Mergulho meditativo na Estruturação do Self de Lygia Clark
- Ale Toledo
- 9 de dez. de 2024
- 9 min de leitura
O texto a seguir é parte integrante de uma série de quatro reflexões que compõem o projeto "Poéticas da Alma", ação cultural apoiada pela Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022), por meio do EDITAL DE CHAMAMENTO PÚBLICO Nº 03/2023 - CONCESSÃO DE BOLSAS - LEI PAULO GUSTAVO da Superintendência Municipal de Cultura de Pouso Alegre/MG.
Caminhos de vivências profundas

Lygia Clark (1920-1988) foi uma pintora e escultora brasileira contemporânea, nascida em Belo Horizonte (MG) e que iniciou seus estudos artísticos com Roberto Burle Marx em 1947, no Rio de Janeiro, quando já tinha 27 anos. Mudou-se para Paris em 1950, onde foi aluna do pintor cubista Fernand Léger, entre outros, e fez sua primeira exposição individual, no Institut Endoplastique.
Clark estevem profundamente envolvida com os movimentos artísticos de vanguarda, sendo parte integrante do Grupo Frente, um marco do movimento construtivo nas artes visuais brasileiras. Foi também uma grande questionadora, contrapondo-se à exacerbação racionalista da arte concreta, defendendo uma arte ligada a uma significação existencial emotiva e afetiva.
A poética de Lygia Clark caminha no sentido da não representação, ou seja, da não necessidade de criações artísticas que fossem meramente representações figurativas concretas, e da superação do suporte que sustentavam as obras. Propõe a desmistificação da arte e do artista e a desalienação do espectador, que finalmente compartilha a criação da obra.
Lygia Clark, propondo uma aproximação de suas obras com o público que com elas se relacionavam, foi um expoente na concepção de uma maneira de fazer arte que proporcionasse aos espectadores uma possibilidade de experimentação mais direta com a obra, podendo não apenas observá-la com distância, mas agora podendo manipulá-la, como no caso de suas obras que compõe a série Bichos.
Produzidas com chapas de metal e dobradiças, as obras não possuem uma estética única e rígida. A partir desse ponto o expectador passa a ter papel atuante na manipulação de construção da forma da obra. Em “Bichos” a escultura desce do cavalete, desce do pedestal e ao invés de ser feita de bronze ou mármore (materiais tradicionais), ela passa a existir a partir de materiais simples e a ser ativada pelo manuseio de qualquer pessoa, tirando o espectador do papel contemplativo e convidando-o a participar efetivamente da cena.
Mas Lygia Clark vai além, e desenvolve em sua carreira artística mecanismos que fazem com que essa relação entre o expectador e a obra seja ainda mais profunda, fazendo do processo artístico um caminho de autodescobertas e experimentações.
Em suas sessões intituladas Estruturação do Self, Clark desenvolve um trabalho no qual culminam as investigações da artista que envolvem o receptor e convocam sua experiência corporal como condição de realização da obra. Clark estabelece uma ponte entre um objeto (ou uma composição de objetos) e as sensações do expectador, propondo que esse se relacione com o objeto a partir de seu próprio corpo, ou seja, usando todos os seus sentidos para explorar as sensações que surgem desse contato. Objeto Relacional é a designação genérica atribuída por Lygia Clark a todos os elementos que utilizava para condução de tais experimentações.
A partir de 1975, Lygia Clark começa a aplicar os objetos relacionais como prática terapêutica, acionando assim vários sentidos como o olfato (com uso de máscaras sensoriais), o tato (como em “Água e conchas” e “pedra e ar”) e todos os outros de formas diversas, criativas e não convencionais. Passa a chamá-los de “objetos relacionais” uma vez que, para a artista, a existência do objeto só se dá em relação com o participante, isoladamente ele não tem qualidade nenhuma.
Estado de presença
Com seus objetos relacionais, Lygia Clark convida os participantes a se engajarem em uma experiência sensorial profunda, enfatizando a importância da experiência direta. Sua abordagem dissolve as fronteiras entre o objeto em si e o sujeito da experiência, pois esses não são coisas separadas, a experiência só acontece pelo encontro de ambos, e isso intensifica a atenção e a sensibilidade do corpo.

Esse processo conduz a uma introspeção tão profunda, que é como se tudo o que está pairando ao redor (sons no entorno, estímulos visuais, até mesmo pensamentos aleatórios) se aquietasse e a pessoa mergulha profundamente no momento presente.
O yoga é um caminho que propõe esse estado de intensificação da percepção do momento presente, pois reconhece que é nele que moram todas as experiências. Qualquer ação que se possa realizar, só poderá ser executada no momento presente. Ouvir um som, sentir o gosto de uma maçã, tocar uma superfície macia, ver um lindo pôr-do-sol, sentir o cheiro do café, só é possível de ser percebido e experienciado no presente. Você pode até pensar que existe uma ação alocada no passado, como por exemplo lembrar que você comeu uma banana no café da manhã, mas isso é apenas uma lembrança e a própria memória desse fato é percebida no momento presente.

O método de Estruturação do Self que Lygia Clark propõe esse contato profundo com as sensações que se estabelecem na relação dos objetos com o sujeito e que evocam sentimentos e memórias. A interação com os objetos relacionais pode ser vista como uma forma de absorção meditativa, na qual a atenção é direcionada para o aqui e agora, como em uma prática que no yoga chamamos de Pratyahara, o recolhimento dos sentidos.
A experiência da unidade
O trabalho de Clark frequentemente desafia a dualidade entre sujeito e objeto, self e outro, de forma que o que interessa não são os objetos em si, e nem o sujeito da experiência em si, mas a relação que se estabelece no encontro entre os dois. Ao se envolver com objetos relacionais, os participantes experimentam uma fusão do “eu” com o objeto de estímulo. A sensação produzida ocorre pela unidade dessa relação. Dessa forma a dissolução dos limites percebidos no trabalho de Clark pode ser comparada à jornada iogue em direção à realização da unidade.

Esse conceito de não-dualidade é explorado de maneira bastante profunda e poética em textos da filosofia tântrica como o Vijnana Bhairava Tantra. O texto é escrito na forma de um diálogo entre Shiva, que representa a consciência imanifesta, e Shakti, que representa a própria força da manifestação. O diálogo se estabelece a partir de uma entidade que pergunta (Shakti), conferindo a possibilidade do conhecimento se revelar, e outra que responde (Shiva) que permite que o conhecimento seja de fato revelado. Porém, Shiva e Shakti não entidades são separadas, mas sim uma coisa só, existe uma co-dependência existencial, ou seja, uma só existe enquanto a outra existe.
Um exemplo que é simples, mas ainda eficiente, que podemos adotar para entender melhor essa unidade é o de um pote de barro. O pote de barro é constituído de usa matéria (barro) e de sua forma (pote), sendo que o barro pode ser considerado a causa substancial (Shiva) e o pote em si, enquanto expressão de uma forma, é a própria manifestação (Shakti). Dessa maneira, ainda que possamos separar em dois conceitos diferentes (pote e barro), esses não são separáveis na realidade. É impossível pegar uma balança e medir qual o peso do pote e qual o peso do barro, como se fossem separados.
Nesse sentido, o trabalho desenvolvido por Lygia Clark se estabelece nessa unidade entre o sujeito e o objeto relacional, sendo que a experiência ali experimentada é fruto da união entre essas entidades. Só existe a totalidade da experiência quando é feita essa fusão, e dela surge uma experiência absolutamente única e singular, pois ela diz respeito àquele momento e àquela relação específica. Com isso quero dizer que não existe experiências iguais com sujeitos diferentes. Por exemplo, quando Lygia Clarck utiliza como objeto relacional uma bucha e passa ela suavemente pelo corpo de um homem, essa textura mais áspera e seca cria uma sensação à qual o sujeito define como “a pele de meu pai”. A mesma ação de passar uma bucha suavemente pelo corpo de outra pessoa certamente evocaria outro tipo de sensação e elaboração da experiência, ou seja, é na junção sujeito/objeto que nasce uma experiência única fruto dessa fusão, de forma eu a experiência não é separada nem do sujeito, tão pouco do objeto.
Se você toca uma superfície aveludada, isso pode te trazer uma sensação de conforto, ao passo que a mesma experiência para outra pessoa pode representar uma sensação desagradável por ela ter aflição de veludo (como é meu caso que já fico com aflição só de pensar). Isso porque a experiência não é um fato isolado do par sujeito/objeto, e é nesse sentido que a experiência em uma campo mais abrangente e não-dual pode acontecer.
Uma jornada profunda
Toda experiência, por mais simples e banal que seja, nos afeta de alguma maneira. Nosso estado de ser/estar no mundo está em constante transformação por conta dessa interação: o mundo me afeta e me transforma, eu afeto o mundo e o transformo.
O fato é que podemos dizer que processo pode ocorrer em camadas, ou níveis, que vão nos indicar se a experiência foi superficial ou profunda, porque uma mesma experiência pode nos tocar de maneiras muito diferentes em fases diferentes da vida.
Por exemplo, lembro quando eu era pequeno e uma música tocava na rádio e meu pai se transformava, ficava alegre, empolgado, me dizia que aquela música era da época dele quando saia para dançar, tentava me contagiar com a sua emoção, mas pra mim era só uma música antiga. Em meu pai aquilo tocava em um lugar mais profundo de memória e afeto, em mim, apenas tovaca apenas a superfície.
Patanjali, em seu famoso tratado sobre yoga chamado Yoga Sutras, fala sobre essa experiência profunda de conhecimento que acontece ao nos relacionarmos com algo. No sutra 1.17 ele afirma:
I.17 vitarka vicāra ānanda asmitā-rūpa anugamāt saṁprajnātaḥ |
Samprajnata (conhecimento profundo) é aquele que se alcança pelo raciocínio, discernimento, completude e percepção do eu
Vitarka, vicāra, ānanda e asmitā são os estágios sucessivos que acompanham o estado de samprājñāta samādhi, ou uma experiência de conhecimento muito profunda.
Os termos são explicados da seguinte maneira:
Vitarka: é o nível mais superficial, o raciocínio ou reflexão focada em um objeto mais concreto. Uma forma de se relacionar com a parte mais grosseira e aparente de objeto.
Vicāra: uma camada mais profunda, reflexão sutil ou contemplação mais abstrata do objeto.
Ānanda: a experiência de felicidade ou bem-aventurança que surge derivada da integração real e total com o objeto em suas camadas grosseira e sutil.
Asmitā: integração total da mente com a experiência do objeto e sua assimilação.
E essa é exatamente a jornada de aprofundamento proposta por Lygia Clark ao utilizar os objetos relacionais. Um processo que não leva apenas à experiência, mas à transformação.
Para essa análise, peguemos o exemplo do objeto relacional “Pedra e Ar”. Em “Breve descrição dos Objetos Relacionais”, um texto de Suely Rolnik que pode ser encontrado no catálogo da obra Lygia Clark, encontramos uma boa descrição sobre essa composição:
“Em Pedra e ar (1966), a obra na verdade não é feita apenas de saco plástico, elástico, pedra e ar. Se o peso da pedra se sustenta sobre a leveza do ar a ponto de mover-se no sentido contrário ao da gravidade, é porque se agrega ao ar da bolsa a força do ar produzida na inspiração e expiração próprias da pulsação vital do participador, que dependem, por sua vez, do movimento de seus pulmões e da motricidade de seus braços e mãos. Inseparáveis na composição desta obra, a fusão do corpo dos materiais com o corpo humano que os explora, libera o objeto de sua exterioridade inerte e o sujeito do isolamento estéril em sua relação com o mundo – a expressividade do objeto se revela no tempo de realização da proposta por aqueles que se dispõem a vivê-la. É nas sensações que promovem em sua subjetividade todos estes elementos articulados que a obra propriamente dita se realiza: ela deixa definitivamente de reduzir-se à sua visibilidade e de possuir uma existência fechada em si mesma. Daí porque Lygia Clark considerava Pedra e ar (1966) seu primeiro trabalho sobre o corpo e, talvez por isso, seu preferido. “
Veja, o primeiro contado do espectador com a obra é o superficial, constata-se que o objeto é um saco plástico com ar e uma pedra em cima. Possui uma forma, uma textura, um peso específico. Esse é o nível primário e mais “grosseiro”, a constatação da forma densa que o objeto apresenta (Vitarka).
Segue-se então para uma camada de investigação mais profunda e abstrata. Não se trata mais apenas de um saco plástico com ar, elástico e uma pedra, o objeto é a representação do contraste da leveza e do peso e está intimamente relacionada a entrada e saída de ar nos pulmões das pessoas que se relacionam com ele. Torna-se uma representação simbólica desse ato vital de respirar e da fluidez desse processo. Esse é o nível de interação profunda da mente com a dimensão subjetiva do objeto, que permite entendimento sobre seus aspectos sutis (Vicāra).
Dessa fusão entre corpos (humano e objeto) estabelece-se um estado de completude, advindo da compreensão profunda das camadas grosseiras e sutis da obra. Sujeito e objeto tornam-se uma só coisa e o espectador vê ali no objeto “Pedra e ar” a expressão de sua própria vida na forma dinâmica de sua respiração sendo transmitida e ao movimento que se estabelece no subir e descer da pedra. Essa experiência pode então assumir um caráter transformador para o sujeito (Ānanda).
Essa vivência passa então a integrar o saber mais íntimo daqueles que a vivenciaram em profundidade. É o nível da integração total da mente com a experiência do objeto e sua assimilação (Asmitā).
Memória do corpo
A obra de Lygia Clark nos leva a uma profunda jornada sensorial, que transcende os limites tradicionais da arte e da percepção. Sua proposta estabelece uma experiência artística que não é um evento unilateral. Ao contrário, ela promove a fusão entre sujeito e objeto, entre o ser e o mundo, fazendo com que a interação seja o verdadeiro motor da criação.
Lygia Clark nos convida a mergulhar nesse fluxo, onde a arte e a vida se entrelaçam, e onde a percepção pode ser, em si, uma forma de autoconhecimento. Ao utilizar seus objetos relacionais, a artista cria um caminho para que, ao tocar o mundo, possamos ser tocados por ele de maneira mais profunda, reconhecendo a interdependência que nos constitui. Seja na arte, seja no yoga, o verdadeiro encontro acontece quando nos permitimos ser completamente absorvidos pela experiência, dissolvendo as fronteiras entre o que somos e o que vivemos.
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